Superar o senso comum e o preconceito
Professora Delze dos Santos1 e frei Gilvander Moreira2
Belo Horizonte, 20 de julho de 2009.
Estimado apóstolo Paulo, a paz e a justiça estejam com você.
Passados tantos anos, os seus ensinamentos e testemunhos registrados no Novo Testamento da Bíblia, nas suas Cartas aos cristãos das periferias de grandes cidades, tais como, Tessalônica, Corinto, Filipos, Roma, região da Galácia etc, ainda iluminam cristãos e humanistas mundo afora. Nem eu nem você estamos fisicamente neste mundo terrestre, mas se olharmos bem estamos presentes aqui na terra como inspiradores de vida e como construtores da verdadeira justiça.
Eu, Dandara, fui companheira de Zumbi dos Palmares. Assim como Onésimo, da sua Carta a Filemon3, fomos escravos. Mas não nos resignamos diante do sistema opressor-escravocrata. Fugimos das senzalas e construímos quilombos, territórios de liberdade e de vida para todos. Preferimos a morte à escravidão. Como você, combatemos o bom combate, perseveramos numa fé libertadora, na certeza de que o Deus da vida não discrimina ninguém e de que o Espírito Santo permeia e perpassa todas as pessoas e culturas.
Nas Minas Gerais de tantas escravidões, terra da escrava Anastácia e de Chico Rei, ressurgimos no céu azul de um belo horizonte. Ressurgimos dando o nome Dandara a uma Comunidade que sonha resgatar a dignidade humana de milhares de famílias sem-casa e sem-terra. Famílias que descobriram na luta a forma de conquistar direitos para não viver mais na exclusão. Famílias que têm mostrado que dignidade não é esperar por moradia numa fila oficial da prefeitura de Belo Horizonte, pois a fila não anda ou quando anda é devagar demais.4
No bairro Céu Azul, como já bastante divulgado, desde o dia 09 de abril de 2009, estão acampadas mais de mil famílias sem-teto e sem-terra que estão contribuindo na construção de uma nova política urbanística e revelando, a partir da luta por moradia em Belo Horizonte, as grandes contradições e equívocos na política social e agrária em nosso país. Revelam também como as crises econômica e financeira atingem em primeiro lugar os pobres.
Não bastasse a resistência institucional do Prefeito que não dialoga, da Polícia que age para defender os interesses da Construtora Modelo Ltda, há poucos dias recebemos de um morador do Bairro Céu Azul, vizinho da Ocupação Dandara, uma carta, via e-mail, cujas palavras deram-nos conta de como o senso comum e o preconceito podem atrapalhar a caminhada de uma sociedade rumo à solidariedade democrática.
Querido apóstolo Paulo, pensamos em escrever a você, em nome de todos da Comunidade, moradores e apoiadores, porque fundou e acompanhou muitas comunidades cristãs e, através de Cartas, ajudou-as (e tem nos ajudado) a construir comunidades que sejam fermento, sal e luz na sociedade “escravocrata” como essa em que vivemos. Assim como o Galileu de Nazaré, você também vive em nós. A luta é árdua, mas promissora.
A partir da carta de um vizinho de Dandara, certamente vamos nos ajudar mutuamente na tarefa de compreender a realidade e despertar novos parceiros nesta luta. Preservando a identidade do morador, vamos começar por suas próprias palavras para fazer as reflexões que precisam ser feitas e, sobretudo, dialogadas com os moradores da região. Vamos chamá-lo de Pedro. Essa carta poderá ajudar não apenas aos que vivem ali, mas outras pessoas que vivem em regiões onde chegam essas novas famílias. Todas famílias que buscam na luta e em solidariedade a conquista do espaço nos territórios urbanos e rurais.
Disse Pedro no e-mail:
Meu nome é Pedro. Sou morador do bairro Céu Azul há 30 anos. Meu pai, com muito sacrifício, comprou e pagou o lote, construiu uma casa e criou sua família. Seguindo o seu exemplo, casei, morei com meus pais e depois de oito anos eu e minha esposa adquirimos um lote e construímos nossa casa também no bairro Céu Azul. Desde 09/04/2009, toda a população do bairro está apreensiva com a iminência da criação de mais uma favela. E, para meu espanto com o apoio de setores da Igreja Católica e de sua Universidade. Não discordo do direito das pessoas de terem um teto para morar, mas que as coisas sejam feitas dentro da normalidade e legalidade, não invadindo terrenos e colocando lá pessoas de bem e outros tantos marginais e pessoas que já possuem casa (até mesmo no Céu Azul). Pelo encaminhamento desse processo, as famílias irão construir barracos naquele local, sem nenhuma infra-estrutura e será um "celeiro" para traficantes, ladrões e outras mazelas que nós brasileiros bem conhecemos. Daí, Frei Gilvander, o senhor e os outros "apoiadores" e "intelectuais" irão virar as costas para estas pessoas e passarão a acompanhar de seus apartamentos na zona sul, essa tragédia humana chamada OCUPAÇÃO DANDARA. Mas, continuo com esperança que a luz da razão ilumine a liderança deste movimento e procure uma solução mais sensata. Não crie mais um problema.”
Após pensarmos em todas as mazelas que resultaram, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, em tanta desigualdade social - mazelas essas que podem ser melhor identificadas nos processos históricos irresponsáveis da colonização européia para a expansão capitalista, da ditadura político-militar, e mais recentemente da exploração neoliberal -, formulamos a seguinte resposta a Pedro.
Caro Pedro, nós, os apoiadores da Comunidade Dandara, somos pessoas comuns, trabalhadoras como você, também somos pais, mães e filhos de trabalhadores explorados ao longo da história deste país. Começamos a trabalhar bem cedo, mas descobrimos que não podíamos ficar acomodados, de braços cruzados dentro da “normalidade e da legalidade” com os pequenos privilégios5 (direitos conquistados pelos trabalhadores na luta), esperando a nossa aposentadoria, acreditando que os processos de inclusão social, ou seja, a construção de uma sociedade mais justa, fundada no princípio da igualdade, aconteça pelas vias políticas tradicionais. A democracia representativa, essa que você chama de via da normalidade, está em descrédito no mundo inteiro. Os políticos profissionais exercem os seus mandatos preocupados com a reeleição. Assim, todos os passos são calculados, só fazem o que vai lhes render mais benefícios eleitorais no futuro. E para isso fazem pesquisas, alianças como os que têm grande poder econômico, manipulam junto com a mídia as informações. Ao final fazem as regras, que você chama de legalidade, para beneficiarem-se e para manterem tudo como está. Mais dinheiro para quem já tem dinheiro, mais propriedade para quem já tem propriedade. No Brasil vigora, na prática, o seguinte adágio: “Para os pobres, os rigores da lei; para os ricos, as beneces das lei.”
Por tudo isso é que acreditamos que há muito caminho a ser percorrido, no Brasil e na América Latina, rumo à igualdade social, justiça econômica e sustentabilidade ecológica. Precisamos conquistar o apoio de pessoas como você, que não fazem parte das elites e não têm nada a ganhar com a manutenção de um terreno de 40 hectares, totalmente ocioso, abandonado mesmo, em Belo Horizonte, propriedade que não cumpria sua função social, o que é exigido pela Constituição de 1988. Imagina uma região na qual o poder público investiu muito dinheiro, e de toda a sociedade, com asfalto, iluminação pública, rede de água e esgoto e que serve apenas como depósito de lixo ou para desova de cadaver e entulho. Isso chama-se especulação imobiliária. Tudo isso sem contar que há fortes indícios de grilagem de terras e doação de terrenos públicos por agentes dos governos na região da Pampulha no passado.
Pedro, o fato de você gastar o seu tempo mandando a mensagem, externando a sua preocupação, é sinal de que quer construir um espaço saudável de convivência. E é isso mesmo que nós queremos também. Não dá mais para apoiarmos falsos projetos de cidade, que isolam os indesejáveis bem longe, onerando-lhes o transporte, dificultando o acesso ao trabalho e renda, aos serviços públicos de saúde e educação e ao mesmo tempo construindo ilhas de tranqüilidade em determinados lugares para os mesmos privilegiados e enriquecendo uns poucos com a especulação imobiliária. Não estamos misturando pessoas de bem com marginais.
Sabemos que não conseguimos compreender sozinhos toda a realidade que nos cerca. Os meios de comunicação (cite-se em Belo Horizonte a Rádio Itatiaia, TV Globo, tablóides e outros) só vão noticiar os fatos - e o que acontece na Ocupação Dandara não é exceção -, de acordo com a conveniência dos patrocinadores deles, você não acha? Existe um conluio entre a grande mídia, os políticos profissionais e os grandes exploradores capitalistas, bancos, multinacionais. Somente chegam até o povo as notícias filtradas por eles. Se olharmos bem as novelas e a vida dos artistas, como mostrado na televisão, está tudo ótimo no Brasil. O governador de Minas mesmo, o Aécio Neves, já foi denunciado várias vezes por violar a liberdade de informação aqui no estado, não deixando que sejam mostradas as mazelas sociais e a violência que assola a juventude e assombra a maior parte do povo.
Pensamos que se te incomoda a Ocupação Dandara é porque você ainda não conhece bem o que ocorre ali. É possível que haja algumas pessoas na Ocupação que não precisam mesmo de casa, que tentam usar a luta de muitos para levar vantagem pessoal. Mas, isso não deslegitima a luta dos que precisam. Em qualquer lugar onde haja seres humanos existem desvios, “pecados”. Existem professores que não merecem esse nome, existem padres que não são sensíveis às causas dos pobres, existem médicos que não deveriam ter o direito de exercer a profissão, e vai por aí a fora. Todavia, a maioria esmagadora dos pobres é digna, merece o nosso respeito e apoio. Se um sai da exclusão toda a sociedade ganha.
Você mesmo admite que o seu pai somente comprou e pagou o lote onde morou com muito sacrifício. E isso é verdade. No Brasil, o direito de morar foi transferido para a própria população que tem de se virar. Mas não deveria ser o contrário? Se um país quer pessoas saudáveis, pessoas boas trabalhando para desenvolver a nação, não deveriam os governantes em primeiro lugar cuidar para que essas pessoas vivessem com dignidade? Diante desta constatação é que sugerimos a você, ao invés de questionar os apoiadores e as famílias que têm resistido naquele frio e, às vezes, na chuva e no sol, passando toda a sorte de dificuldades nas barracas de lona preta, inclusive o criminoso corte da água pela poderosa estatal COPASA, questione toda essa injustiça social, que impõe tanto sacrifício às famílias para adquirirem um pedaço de chão - mesmo para os milhares de desempregados – em um país continental como o Brasil. Pedro, o Brasil é um país rico. Nós temos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território e uma população pequena em relação ao tamanho do território, que sofre sem terra para trabalhar e sem casa para morar.
Você já se deu conta de que muitos não têm casa e emprego porque tem gente que tem propriedade ilegal demais, dinheiro demais, não tributado conforme as leis, e uma grande maioria vivendo igual bicho pelas ruas ou no interior desprovido de energia, de estradas, de escolas, de alimentos e serviços de saúde pública? A nossa normalidade e legalidade política são muito injustas e não podem ser invocadas à luz da Constituição de 1988. O poder só age para beneficiar os amigos de quem está no poder. E é contra esse poder, que faz da cidade um espaço para poucos e que joga os demais na periferia de tudo - do transporte, da saúde, da moradia, da escola, da religião - é que lutamos. Lutamos não só pelos trabalhadores da Ocupação Dandara, lutamos também por você, por sustentabilidade ecológica, por justiça social, por Política legítima.
Não se preocupe, não estamos levando uma favela para o bairro Céu Azul. A comunidade Dandara nasceu ali após a conscientização de trabalhadores pobres que descobriram que somente se organizando poderiam sonhar com uma vida melhor. Temos a certeza de que esses trabalhadores que chegam ao Céu Azul agora serão melhores vizinhos do que são outros nos bairros ricos de Belo Horizonte. Sabe por quê? Porque nas classes média e alta poucos se conhecem. Normalmente não existe solidariedade entre as pessoas ricas. Ogocentrismo reina. E mais, existem drogas e violência em qualquer lugar. Quantos assaltos ocorrem nesses condomínios de luxo? E os crimes de colarinho branco feito por engravatados?!
Quer uma boa notícia? A Comunidade Dandara foi planejada por arquitetos da PUC Minas (professores e estudantes) gratuitamente. Não porque esses profissionais querem desvalorizar os imóveis dos moradores do bairro Céu Azul, mas porque esses profissionais, capazes de compreender a realidade social existente, entendem que todos têm o direito de morar com dignidade. Fizeram um projeto muito bonito, apesar de simples porque acessível, para a Ocupação Dandara. Junto com os arquitetos, diversos professores, advogados, pedreiros, religiosos, mães e pais de família arregaçaram as mangas para contribuir na educação de crianças e adultos da nova comunidade que está sendo gestada. Acreditamos que uma sociedade boa é o resultado da educação para se viver em sociedade. Nenhuma sociedade ideal cai do céu, ela é fruto da ação coletiva de todos os que integram essa sociedade mesma. Crianças, desempregados, idosos, mães e pais pobres devem ser cuidados e não abandonados à própria sorte. Se o governo não faz, dentro da normalidade e da legalidade - já que moradia, educação e todos os direitos sociais que já falamos, são leis - nós temos de forçar o governo a fazer e inibirmos a avareza dos empresários que agem invocando indevidamente as leis.
Já finalizando, gostaríamos de dar-lhe um conselho. Marque com as lideranças uma visita à Ocupação Dandara. Conheça as dificuldades para se resgatar a vida após tanta injustiça social sofrida. Conheça pessoas maravilhosas e inteligentes que vivem ali e cujos filhos às vezes são mesmo vítimas do tráfico, crianças que são vítimas da violência, mulheres cujos maridos são vítimas do alcoolismo, homens e mulheres sem trabalho que há muito perderam referências de dignidade. Mas veja, eles mesmos não lucram com tudo isso. Contrariamente há alguém de fora que lucra: jornais sensacionalistas, igrejas descomprometidas com a verdadeira espiritualidade, empresas que só pensam no lucro, políticos que só os vêm nas eleições. Sugerimos que você, como bom vizinho, se torne amigo dos moradores da Ocupação Dandara. Passe a ver neles seres humanos, pessoas que merecem o nosso apoio e respeito. Veja neles brasileiros, não pessoas que ameaçam qualquer território. Ofereça a eles algum de seus dons, talentos para melhorar a vida de todos. Lá precisa-se de gente que saiba construir, ler projetos, usar trenas, costurar, ler e escrever. Precisa-se sobretudo de gente capaz de ver além das lentes do preconceito e do senso comum.
Temos certeza de que assim você não terá medo daquelas pessoas e nem verá ali um celeiro para o tráfico ou uma maldição que desvalorizará o seu imóvel. Poderá desta forma passar a chamá-los pelo nome e verá neles parceiros capazes de expulsar do bairro os traficantes e os praticantes de outros crimes, principalmente os oportunistas das empresas da especulação imobiliária. Com você, então, cuidaremos melhor do nosso país inteiro, e não apenas no ambiente mais próximo, porque sabemos que não existem muros capazes de manter a desigualdade e a injustiça longe de nós.
Finalmente, não se preocupe conosco, os apoiadores da Comunidade Dandara. Não vamos nos trancar em nossos apartamentos na zona sul. Somos cidadãos no mundo. Fazemos parte de uma tribo que acredita ser importante juntar todos numa grande Comunidade Dandara I, II, III, IV, V ...! Venha para esta tribo você também. Veja como a sua vida ganhará novo significado! Não temos medo de pobres e lutadores, temos medo é de uma sociedade cujas pessoas acham que já resolveram a sua vida, mesmo passando dificuldades, sem aprender com as mazelas sociais e viraram as costas para os outros.
Estimado Pedro, assim como Paulo, o apóstolo Pedro se tornou um grande seguidor de Jesus, se libertou de preconceitos e abraçou apaixonadamente a causa do evangelho: opção pelos marginalizados. “Pedro, tu és pedra e em ti construirei minha igreja”, (que é povo de Deus), disse Jesus, segundo o evangelho. O apóstolo Pedro foi pedra, mas não pedra maciça, compacta; foi pedra-gruta, espaço de acolhida de todos, preferencialmente dos pobres. Seja assim Pedro.
Enfim, Pedro, desculpe as muitas linhas da Carta. Não tivemos tempo de ser breves diante da gravidade dos preconceitos e senso comum referidos na sua carta. Receba o nosso abraço fraterno!
Querido apóstolo Paulo, perdoe-nos, por Dandara, tomar seu tempo lendo tamanho escrito. Ficaríamos muito contentes se pudéssemos receber também uma longa resposta a esta carta, assinada agora por Pedro e por Paulo.
Abraços ternos,
Delze e Gilvander
p/ Comunidade Dandara
Belo Horizonte, 20 de julho de 2009.
EM TEMPO: Acabamos de receber uma carta de Juvenal Alves Ferreira, morador do bairro Céu Azul que apóia a Ocupação Dandara.
Na Carta, Juvenal diz que apóia o movimento, porque as pessoas que lá estão são humildes e discriminadas pela alta sociedade. Necessitam de uma moradia, pois não possuem condições para aquisição de uma casa para morar. Diz que Deus criou o mundo para todos, mas os políticos não vêem a classe pobre, não percebem que é esta classe que os colocam no poder. Os pobres são tratados como escravos. Ressaltou que os grandes políticos quando necessitam de terreno, na maioria das vezes, não adquirem de forma legal e justa, frequentemente invadem áreas, como é o caso da Britadora Santiago, que invadiu área que pertencia a outro, se tornou uma grande empresa que gera enormes lucros, mas não olha para a comunidade à sua volta.
Juvenal concluiu sua carta com uma pergunta que procura resposta: “Porque os grandes podem e os pequenos não?”