segunda-feira, 15 de junho de 2009

Ocupação Dandara, um direito constitucional.

Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães1

Desde 09 de abril de 2009, mais de mil famílias sem-casa e sem-terra resistem na Comunidade (Ocupação) Dandara, onde ocuparam cerca de 400 mil metros quadrados de terreno abandonado, no Céu Azul, região na Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG. Dia 09 de junho de 2009, o desembargador Tarcísio José Martins Costa, da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cancelou a decisão de outro desembargador que tinha suspendido uma Liminar de reintegração de pose e reabilitou a Liminar de reintegração de posse em nome da construtora Modelo, autorizando assim que a Polícia faça o despejo das mais de 4 mil pessoas pobres que estão lá. O povo não tem para onde ir, tem direito de permanecer na posse do terreno abandonado há 40 anos e está disposto a resistir a uma tentativa de despejo. Isso pode causar um massacre em plena capital mineira.

Tramita na 20ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte uma Ação de Reintegração de posse com pedido de liminar proposta pela agravada onde está escrito que sua propositura se justifica “em face de uma operação orquestrada por pessoas que se dizem integrantes de movimento sem terra – MST”.

Os termos da petição mostram por meio de nomeações e expressões toda uma carga de preconceitos que encobrem os reais fatos que fundamentam os direitos fundamentais neste caso envolvidos. Para o caso não interessa se são ou não integrantes do MST, pois todas as pessoas têm direito à dignidade, a moradia, trabalho, alimentação, direitos que não podem ser suprimidos por um “suposto” direito de propriedade que se perdeu pelo não cumprimento da função social da propriedade. O direito de propriedade como direito absoluto há muito não existe mais, em nenhum ordenamento jurídico do mundo. Desde que as pessoas perceberam, em diversos lugares e em diversos momentos, que a terra e os bens naturais do planeta são limitados, e que um direito de propriedade que se fundamentava nos antigos argumentos naturalizantes do liberalismo econômico não mais se sustenta diante das necessidades humanas e da igualdade jurídica, o direito de propriedade passou as ser condicionado ao cumprimento de função social.

A dignidade humana é a base dos ordenamentos constitucionais democráticos do final do século XX e do século XXI e não mais as fundamentações egoístas e individualistas de um direito liberal que acabou na primeira guerra mundial, e que se sustenta apenas na cabeça de algumas pessoas desavisadas ou de pessoas que querem sustentar seus privilégios como se direitos fossem.

Os ordenamentos constitucionais democráticos que se constroem hoje no mundo, incluindo a nossa Constituição de 1988 trazem um sistema coerente de normas jurídicas que se fundamentam nos direitos humanos constitucionais entre eles os direitos sociais ao trabalho, justa remuneração, saúde, moradia, educação, função social da propriedade rural e urbana, liberdade, igualdade jurídica, democracia popular, entre outros. Não há hierarquia entre estes direitos, mas sim complementaridade. Estes direitos são indivisíveis e devem ser compreendidos como direitos históricos que se realizam diante de casos concretos complexos. Deixamos de lado, portanto, toda visão compartimentalizada, naturalizada ou descontextualizada do Direito.

Podemos acrescentar mais: o Direito não pode ser mais instrumento de dominação onde a propriedade se colocava como o centro do sistema jurídico. A finalidade deste ordenamento democrático fundado nos direitos humanos é a vida com dignidade e liberdade, uma vez que não há liberdade possível na miséria. Por isto que os direitos fundamentais (direitos humanos na perspectiva constitucional) são indivisíveis.

A propriedade não é e não pode ser mais importante do que a vida digna e livre. Isto não tem nenhum sentido nas ordens constitucionais democráticas atuais. Logo, fatos que eram comuns no passado não podem ser hoje tolerados: em nome de uma propriedade usada para a especulação, não utilizada para nenhum fim social (função social), retirar legítimos ocupantes que lutam por direitos constitucionais de forma democrática participativa, como exigem as democracias atuais. Não há fundamento jurídico para que o Estado (que pertence ao povo) por meio do Judiciário (que pertence ao povo, pois é republicano) e da Polícia (que deve garantir a vida das pessoas e jamais ameaçar a vida de uma coletividade em nome de uma propriedade que deixou de existir por não cumprir sua função social) retire estas pessoas (mais de 1.000 famílias sem-casa e sem-terra) da ocupação Dandara.

Pensemos, pois, em termos constitucionais:

1. A constituição é um sistema coerente de normas;
2. A base da Constituição são os direitos fundamentais;
3. Os direitos fundamentais são indivisíveis, ou seja, não há liberdade sem dignidade e vice-versa.
4. Decorrente das constatações anteriores, podemos perceber que os direitos fundamentais não são hierarquizados “a priori” e que a base destes direitos é a dignidade das pessoas com liberdade;
5. A propriedade, há quase cem anos, deixou de ser a base do direito constitucional;
6. Logo, não podemos, jamais, em nome da propriedade, ameaçar a vida de quem quer que seja;
7. Logo não pode a polícia, órgão constitucional de proteção do direito humano à segurança, ser usada para agir contra a segurança das pessoas pondo em risco a integridade e a vida das pessoas. A vida digna e livre é fundamento de toda ordem constitucional democrática atual;
8. Podemos acrescentar ainda que ninguém está obrigado a cumprir ordens ilegais e inconstitucionais e que os responsáveis por estas ordens devem ser responsabilizados;
9. Finalmente: qualquer ordem judicial não pode jamais escolher entre um outro direito fundamental se todos os direitos envolvidos puderem ser preservados diante do caso concreto;
10. Em caso de escolha não há como se afastar o alicerce do direito constitucional democrático que é a vida com dignidade em nome da propriedade, ainda mais de uma propriedade não utilizada;
11. Não há no caso da ocupação Dandara nenhuma justificativa para se comprometer a VIDA de milhares pessoas em nome de um direito de propriedade que jamais cumpriu sua função social que, portanto, não existe mais.



É muito importante que paremos imediatamente interpretações jurídicas legalistas, descontextualizadas e inconstitucionais, que ameaçam a vida e a integridade das pessoas. O direito constitucional contemporâneo é pela vida com dignidade e nosso ordenamento condiciona toda a nossa ordem econômica e social aos princípios dos direitos fundamentais. As normas infra-constitucionais não podem ser interpretadas/aplicadas contra a constituição.

Não é possível ignorar os princípios constitucionais na solução dos casos concretos. Não só uma lei pode ser inconstitucional, mas sua interpretação e aplicação também, quando aplicadas contra os princípios e normas constitucionais.

A finalidade de nosso ordenamento legal constitucional é a liberdade com dignidade e segurança de todas as pessoas e não apenas dos proprietários ricos como foi nos séculos XVIII e XIX e boa parte do século XX. Romper com uma matriz superada teoricamente e superada na prática pelas transformações sociais, mas que ainda habita alguns discursos jurídicos, é fundamental para que finalmente sejamos capazes de construir no Brasil uma verdadeira ordem republicana fundada na igualdade perante a lei e no respeito à constituição e logo aos direitos fundamentais de todas as pessoas iguais. Isto é a República que ainda estamos por conquistar: um espaço constitucional de respeito à vida, à dignidade e a segurança com igualdade de direitos sem privilégios relativos à origem ou posição social e econômica; cargo ou função; cor, sobrenome, etnia, gênero ou opção sexual, ou qualquer outra diferença que as sociedades historicamente produziram ou venham a produzir.

Belo Horizonte, 15 de junho de 2009.

José Luiz Quadros de Magalhães,

Doutor em Direito Constitucional, professor da UFMG e da PUC Minas, autor de inúmeros livros e artigos, defensor dos Direitos Humanos.

E-mail: ceede@uol.com.br