quarta-feira, 2 de setembro de 2009

A páscoa subversiva de Dandara -balanço aos 4 meses

ALEXANDRE CHUMBINHO - originalmente no jornal sem terra


NO DIA 9 DE ABRIL, quinta-feira de páscoa, o MST de Minas Gerais dava um passo em direção à cidade, mas desta vez não entrávamos no meio urbano em marcha, ou convidados para algum evento. A bandeira fincada no terreno de 40 hectares em plena região metropolitana de Belo Horizonte simbolizava a largada de uma estratégia nova para alavancar a luta de massas e Reforma Agrária no estado. Eram 150 famílias que saíam do trabalho de base na periferia de BH feito pelo MST e pelas Brigadas Populares (BP’s), uma organização parceira cuja pauta principal é a moradia.

O terreno escolhido estava abandonado havia mais de 40 anos no bairro Céu Azul, na zona norte da capital. Rapidamente, em menos de três dias, se juntavam outras mil famílias, na ocupação batizada de Dandara. Ao cabo de duas semanas estavam erguidos 1087 barracos de lona preta, tal qual fazemos no campo, e uma lista de espera de 500, pois já não havia mais espaço na área delimitada pela Polícia Militar. A capacidade e rapidez da massificação – e também da desmassificação – iriam se mostrar como uma das características próprias do meio urbano que fazem parte do aprendizado nesta empreitada.

Acumulando e aprendendo

Aprendizado, aliás, é uma palavra chave desta iniciativa, que tem por detrás toda uma estratégia de aproximação das periferias do campo e da cidade. Há tempos, falamos da necessidade de construirmos parcerias com a cidade para a construção do projeto popular, e temos conseguido em alguma medida fazer alianças e construir espaços unitários com várias forças. Mas a experiência de uma luta concreta e prolongada com os sujeitos ali presentes está sendo capaz de abrir novas perspectivas para entender a própria dinâmica da periferia, as limitações e potencialidades presentes nos processos de construção com os urbanos. E isto parece ganhar contornos de maior importância à medida em que vemos a Reforma Agrária sair da pauta do governo e da sociedade. Desde as primeiras conversas junto com as BP’s, há cerca de um ano e meio, o MST teve bem claro este objetivo de acumular. E para isso resolvemos encarar todos os desafios que surgissem, como a diferença de perfil da base, a dinâmica da ocupação e da organicidade interna, a relação com o entorno e com novos e antigos parceiros. São muitas as novidades e diversidade da dinâmica urbana para a rural. Encontrar um fio condutor que reúna elementos dos dois – o “rururbano” – é desafiador.

Tem havido muita solidariedade e apoio político da sociedade civil, com mais de 70 entidades envolvidas. Alguns fatores colaboram para isso, como a proximidade com os centros de decisão das organizações (articulações, movimentos, sindicatos, partidos) que geralmente se encontram nas capitais. Principalmente a igreja tem se dedicado bastante, através de diversos organismos. Outro fator importante é que a Dandara faz BH reviver as grandes lutas sociais por moradia da década de 80, de forma massiva e organizada. A massividade é uma característica que deve ser estudada, isso tem a ver com o contexto de crise econômica, de ausência de políticas de habitação e com o histórico de luta por moradia da periferia da região.

Rururbano e Reforma Agrária

A bem da verdade, a maioria dos acampados, pelo fato de se tratar de uma ocupação urbana, são movidos por um sonho de moradia e de renda, distanciando-se do perfil dos nossos acampados rurais. Com isto, investir na estratégia do rururbano pode ser visto como abandonar a Reforma Agrária. Mas não é simples assim. A presença massiva e organizada do MST nos grandes centros tem muito mais a oferecer. É possível, inclusive, potencializar a Reforma Agrária, além de fortalecer a luta de massas nas capitais.

Um ou mais assentamentos rururbanos poderiam servir como grande entreposto da Reforma Agrária, centralizando a fase de beneficiamento e agroindustrialização de produtos brutos enviados pelas áreas no interior, e estabelecendo uma relação direta com o mercado consumidor na capital. Além de diminuir os custos do processo de instalação de várias plantas de beneficiamento, existe a proximidade com escolas, obras sociais, cozinhas comunitárias e restaurantes populares, com os quais se manteria o fornecimento dos produtos.

Além disso, uma área nossa dentro de uma região metropolitana pode funcionar como centro de referência para a luta pela terra, recebendo as famílias para as quais nenhuma outra saída resta
senão a de lutar pelos seus direitos. Muitas das pessoas que procuraram a Dandara desde seu início deixaram clara a intenção de ir para a terra, ou se colocavam à disposição para fazer novas ocupações, urbanas ou rurais. Nestes meses não parou de vir gente de longe quererendo saber como faz para entrar na luta. E isso não surpreende, pois sabemos que boa parte da periferia urbana
é formada pelos filhos do êxodo rural das décadas passadas, e ainda resta o sonho de um dia retornar para uma melhor qualidade de vida.

Por fim, o pouco terreno disponível no meio urbano ainda assim pode ser aproveitado para a produção em atividades agrícolas e não-agrícolas, em regime de cooperação e associação. Quadras coletivas podem ser utilizadas para atividades como produção de plantas medicinais e ornamentais, cuja rentabilidade por área é muito alta.

A Dandara hoje

Mas nem tudo são flores. As dificuldades encontradas começam na diferença do perfil do camponês para o urbano, com o agravante de que o acampamento não evita a continuidade das relações desumanizadoras anteriormente estabelecidas, pois está cravado no bairro de origem de boa parte das famílias. Isso dificulta o trabalho de formação política. Também há que se lidar com os institutos de poder local, como o tráfico, que funciona como um Estado paralelo. E por fim, a presença constante da polícia, que não arredou pé da nossa porta um só dia. A luta no meio urbano potencializa a solidariedade, mas também a repressão.

Passados mais de três meses, a situação hoje no acampamento é mais tranqüila. Na parte jurídica, o jogo já virou quatro vezes em medidas liminares, e a tendência agora é de estabilizar até o julgamento de mérito. O número de famílias oscilou bastante, principalmente quando havia liminar de despejo, mas após a última vitória no Judiciário, no início de maio, estabilizou em cerca de mil. Os núcleos de base e setores estão funcionando a pleno vapor. O grande desafio continua sendo abrir diálogo com o Poder Executivo, que tem sido intransigente. No dia 12 de julho, as famílias deram mais um passo rumo à conquista definitiva de Dandara, e começaram a substituir a lona por tijolos e cimento, ocupando todo o terreno e fincando fortemente no chão a concretude de suas necessidades e o peso de seus sonhos.